O PT está refletindo sobre o que aconteceu no país? Não é hora de o PT
também se reavaliar, oxigenar sua relação com a sociedade, sair de um nível de
acomodação institucionalização e burocratização que vive hoje?” – questiona
Marcelo Danéris, integrante da Executiva Estadual do PT-RS, Secretário Executivo
do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio Grande do Sul e
defensor da ideia de um plebiscito interno no partido.
Por Marco Aurélio Weissheimer
Porto Alegre - O sistema político-partidário brasileiro vem sendo fortemente
questionado pelas mobilizações de rua que mudaram a conjuntura do país a partir
de junho. Como partido que governa o país há mais de dez anos, o PT não escapa
desse questionamento. Mas o partido está mesmo ouvindo as vozes das ruas e, a
partir do que escuta, está disposto a fazer alguma mudança mais profunda em seu
atual modo de funcionamento?
No final de novembro, o PT realiza seu Processo de Eleições Diretas (PED)
para renovar suas direções em todos os níveis. O PED pode significar um espaço
de mudança dentro do PT? Identificando a existência de uma “zona de conforto”
dentro do partido, mesmo com tudo o que aconteceu em junho, a tendência Esquerda
Democrática, do Rio Grande do Sul, apresentou a proposta de realização de um
plebiscito interno no PT como forma de enfrentar o que considera ser um quadro
de acomodação e burocratização do partido.
O PT está refletindo sobre o que aconteceu no país? Não é hora de o PT também
se reavaliar, oxigenar sua relação com a sociedade, sair de um nível de
acomodação, institucionalização e burocratização que vive hoje?” – questiona
Marcelo Danéris, integrante da Executiva Estadual do PT-RS e Secretário
Executivo do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Rio Grande do Sul
(CDES-RS). Em entrevista, Danéris fala sobre a origem e o sentido dessa proposta
e defende a necessidade urgente do partido reformar-se internamente para
enfrentar a crise de representatividade que atingiu todo o sistema político.
Qual é a origem dessa ideia de realizar um plebiscito interno no
PT?
Marcelo Danéris:
A origem dessa ideia está ligada à atual
conjuntura que vivemos. Os acontecimentos de junho revelam um fenômeno que não é
privilégio do Brasil.
Há alguns elementos centrais que devem ser considerados
aí. Em primeiro lugar, a crise do modelo econômico neoliberal em nível
internacional que, paradoxalmente, acaba intensificando em alguns países os
remédios que justamente conduziram à crise: redução do Estado, privatização,
supressão de direitos previdenciários, trabalhistas e sociais, redução do
salário mínimo e assim por diante. Os partidos de esquerda tradicionais da
Europa traíram programaticamente as bandeiras de contraposição a um modelo
econômico excludente e elitista.
Neste cenário, a população foi para as ruas em vários países da Europa
defender seus direitos e manifestar-se contra a aplicação dos remédios que
justamente alimentaram a crise. O resultado dessas mobilizações até aqui não é
dos mais positivos, pois houve uma vitória da direita, que mantém os remédios
citados acima, o que reforça uma segunda crise, a da representatividade
política. O discurso do grande capital, do grande poder econômico e de seus
braços midiáticos transferem a responsabilidade da crise da economia para a
política. É óbvio que as duas coisas estão ligadas, mas esse discurso procura
reduzir a crise a uma suposta incapacidade de gestão por parte do sistema
político e dos partidos. Assim, a crítica que deveria ser dirigida a um modelo
econômico é transferida para a política, como se fossem coisas dissociadas.
Outro elemento juntou-se à crise da representatividade: a criminalização da
política, algo que é trabalhado metodicamente no Brasil. Segundo esse discurso,
tudo que vem da política é ruim, sujo e corrupto. Qual é a motivação que um
jovem tem hoje, no mundo inteiro, para se filiar a um partido político ou fazer
parte mais ativa de um processo eleitoral? Se os partidos (e os próprios
governos) são criminalizados e acusados de responsabilidade pela crise
econômica, que motivação pode ter? Então, temos no mesmo ambiente uma crise
econômica, uma crise da representação política e a criminalização da política
como um todo. No Brasil, essa criminalização é muito mais evidente,
inclusive.
Na sua avaliação, o que as mobilizações no Brasil têm a ver com esse
quadro geral?
Marcelo Danéris: As pessoas começaram a organizar suas demandas a partir de
mobilizações sociais que se encontraram nas ruas. E esses grupos não estavam,
necessariamente, saindo junto para as ruas. Tomemos o exemplo do que ocorreu em
Porto Alegre. Houve um grupo que saiu às ruas para garantir mobilidade, para
defender ciclovias, uma luta da Massa Crítica que é um movimento mundial. Outras
pessoas se mobilizaram pela questão ambiental na defesa das árvores do
Gasômetro. Um terceiro movimento é o da Defesa Pública da Alegria, que questiona
a venda de espaços públicos para o setor privado. O Tatu-Bola, no Largo Glenio
Peres, acabou se tornando o símbolo dessa crítica. Depois veio com força a
mobilização contra o aumento das passagens de ônibus. É certo que há
manifestantes que participam de mais de um desses grupos, mas eles não são
necessariamente os mesmos. Mas todos eles se encontram nas ruas e não em alguma
instância do sistema político tradicional, que está completamente esgotado e
superado.
Esses movimentos não se encontram nos partidos, pois estes não são hoje um
canal capaz de dar vazão às suas reivindicações, seus sonhos e ideais.
Infelizmente, o PT também não é, apesar de ser originário das ruas e das lutas
democráticas. O PT é hoje um partido que se burocratizou, se financeirizou,
virou um partido tradicional. Está deixando de ser um grande partido para virar
um partido grande. Então, esses novos movimentos que estão nas ruas não
encontram espaço dentro dessas estruturas quase feudais de grupos de interesse
subordinados a mandatos e ao calendário eleitoral.
Onde encontram esse espaço?
Nas ruas.
Há um terceiro elemento que virou uma ferramenta altamente adequada para toda
essa situação: as redes sociais. Muita gente da esquerda dizia que a internet,
da forma como estava sendo feita, o Facebook, o Twitter e outras ferramentas
levariam a uma individualização extrema, onde as pessoas não precisariam ter
mais relações sociais diretamente e fariam isso através da tela de um
computador. Seria o exemplo mais bem acabado do individualismo neoliberal. Pois
bem, essas redes sociais acabaram virando uma ferramenta de mobilização social,
mostrando o erro de avaliação de muita gente da esquerda. As redes sociais se
transformaram na ferramenta que organiza a insatisfação e leva as pessoas para a
rua. Ela não é a ferramenta que transforma, mas mobiliza e organiza.
E o PT foi pego de surpresa em meio a todo esse
processo...
Marcelo Danéris: Ouvi o Marcelo Branco dizer uma coisa que para mim sintetiza
muito bem o que aconteceu: os jovens foram para as ruas e subitamente os
partidos envelheceram. É impressionante como os partidos envelheceram
rapidamente. Quando os jovens saíram para as ruas isso ficou ainda mais evidente
e escancarado. E aqui no Brasil, isso aconteceu mesmo com todas as políticas
inclusivas implementadas nos últimos anos. Apesar de muitos avanços, esse modelo
não conseguiu dar saltos de qualidade no transporte público, na mobilidade
urbana e no acesso a vários serviços públicos. Gostaria só de apontar também a
disputa que os setores mais conservadores fizeram (e seguem fazendo) pelo
significado dessas mobilizações, tentando capturá-las para criar um nível de
instabilidade política tendo como alvo principal o governo federal. E é preciso
assinalar também que os resultados de todos esses movimentos, até aqui, é
preocupante. Eles não resultaram em governos mais progressistas ou mais à
esquerda. Ao contrário.
A nossa resposta a isso no caso brasileiro é a defesa de uma Constituinte
Exclusiva para fazer a Reforma Política, entregando, como diz o governador Tarso
Genro, à fonte constituinte originária, o povo, a tarefa de se pronunciar sobre
o seu sistema político e eleitoral. Essa proposta foi barrada pelos setores
conservadores. Nós defendemos que a sociedade seja escutada, que um plebiscito
seja feito com o objetivo de reformar e ressignificar todo o nosso sistema
político. Do jeito que está não é possível ficar. E há um segundo elemento que
muita gente parece que não está querendo ver: os partidos estão em xeque, seu
formato e modo de funcionamento. Falando do meu partido, o que essas
mobilizações e movimentos que estão nas ruas podem fazer por dentro do PT?
Há uma zona de conforto que faz com que muita gente pense assim: do jeito que
está estou elegendo os meus, às vezes eu subo, às vezes caio um pouco, mas nada
demais. Há uma acomodação evidente aí, que está completamente desconectada do
que aconteceu em junho. A pergunta que nós estamos fazendo dentro do partido é:
o que o PT fará com isso, já que ele tem um PED (Processo de Eleições Diretas)
no final de novembro? O PT está refletindo sobre o que aconteceu no país? Não é
hora de o PT também se reavaliar, oxigenar sua relação com a sociedade, sair de
um nível de acomodação, institucionalização e burocratização que vive hoje? Nós
entendemos que sim.
Esse plebiscito interno trataria de que temas
exatamente?
A nossa sugestão é ouvir os nossos mais de um milhão de filiados no país
inteiro. Queremos que eles respondam algumas questões: o filiado do PT acha que
o partido precisa fazer uma reforma política interna em seu estatuto? Acha que
deve haver uma convocação exclusiva para realizar essa reforma, elegendo
filiados unicamente para fazer essa tarefa?
Esses filiados não poderiam ter
mandato nem cargos de direção, o que permitira que, no caso do Rio Grande do
Sul, nomes históricos como Olívio Dutra e Flavio Koutzii, e mais nomes da
juventude do partido fossem indicados para isso.
Há um terceiro elemento, que tem tensionado muito o partido internamente, que
é o poder econômico. O mesmo poder econômico que grassa para fora grassa para
dentro. Quem tem mais estrutura, mais mandatos, mais dinheiro desequilibra as
eleições internas, fazendo delas um processo injusto e desproporcional. Nós
queremos perguntar internamente: você é a favor do financiamento único das
campanhas? O partido paga as campanhas e nenhuma candidatura tem o direito de
fazer finanças próprias. O estatuto prevê isso hoje, é verdade, mas é uma
previsão sem consequência, sem fiscalização. É letra morta. Hoje aqui no Rio
Grande do Sul nós temos candidaturas que já têm panfleto, material rodando,
pesquisas rodando, estruturas de militantes paralelas às estruturas do partido,
filiações em massa e garantia de que todas as mensalidades serão pagas até o dia
do PED.
Outra proposta que estamos levantando para discussão é a realização de
primárias no PT para a escolha de candidaturas majoritárias. A sociedade está
reivindicando protagonismo e o partido precisa dar uma resposta a essa demanda,
na nossa avaliação. Os não-filiados não votariam diretamente no candidato, mas
em delegados que definirão as candidaturas. O filtro do militante partidário,
eleito por uma primária, controlaria tentativas de entrismo por parte de outros
partidos. Acreditamos que esse instrumento oxigenaria o PT, trazendo a sociedade
para o debate sobre programas e candidaturas.
Junto com isso, defendemos também a integração das redes sociais em processos
de consultas e eleições. Teríamos que ver como fazer isso, há várias
alternativas. O partido poderia estar usando as redes sociais agora, por
exemplo, para fazer uma consulta sobre a reforma política no país inteiro. Nós
queremos Constituinte, plebiscito, mas qual é a consulta que o PT, como partido,
está fazendo hoje à sociedade?
Quando ele seria realizado?
Nossa proposta é realizá-lo até o dia 1º de outubro, sem alterar as datas do
PED (final de novembro). Se aprovado o financiamento único das campanhas, por
exemplo, que é quase um referendo ao que está previsto hoje no estatuto, teria
que se garantir o cumprimento efetivo dessa regra para a eleição interna. Se
fosse aprovada a constituinte exclusiva interna, no PED elegeríamos filiados
para esse fim. E assim por diante.
E como é que tem sido a receptividade dessa proposta dentro do
partido?
O partido repete, infelizmente, agora, a mesma acomodação que o Congresso
revela em relação à Reforma Política. A ideia é não mudar, apesar de tudo o que
aconteceu, do recado que vem das ruas e da nova conjuntura instalada no país. Há
desde uma acomodação burocrática até uma acomodação de interesses em torno do
PED que foi validado antes dessa nova realidade. O PT precisa encarar seus
próprios fantasmas, tirar seus esqueletos do armário e reconhecer: “sim, nós
também estamos sendo criticados”. Essas críticas evidenciaram que o partido não
está preparado para enfrentar a atual conjuntura.
E o PT faz o que com isso? Por interesses de maiorias já constituídas dentro
do partido ou por uma leitura burocrática da realidade, resolve não promover
grandes mudanças. Há uma cortina de silêncio em torno da proposta que fizemos.
Parece haver um acordo tácito: ninguém fala sobre isso para não criar polêmica e
deixa essa ideia morrer de silêncio. Mas nós vamos falar e vamos passar a
campanha inteira do PED falando sobre tudo isso.
Fonte: Carta
Maior
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